quinta-feira, 24 de maio de 2007

Dois

Era uma vez um menino errante. De tanto errar, de tanto seguir o caminho errado, Errante acabara acertando. Aliás, toda a sua vida sempre fora assim.

Sua mãe sempre quis que ele se chamasse José, mas não consegui convencer seu pai. Então ela sugeriu Pedro. Nada feito.
-Embora meu coração seja de pedra, ainda é um nome muito duro, replicou Indecisão.

Então Dona Maria desistiu de dar um nome. Ela ainda guardava muitas superstições típicas de cidade pequena e quase sem nome (coincidência?). – Na hora certa, no lugar certo, eu vou saber o nome do meu menino sem nome.

Na hora certa, exatos nove meses e um dia, que o menino já hesitara em nascer, Dona Maria esquecera o caminho da maternidade. E agora Seu João?
- Segue a direita ou à esquerda, ou à frente, pode ser pra trás. Só não entro em rua sem saída.
Foi nesse vaivém, dependendo da indecisão, que nasceu Errante. Sem caminho, sem nome e sem hospital. Ele simplesmente nasceu na porta de um veterinário. Não chorou, não reclamou, apenas olhou assustado. Foi quando viu Seu João. Errante abriu o berreiro, como se estivesse reclamando.

- Quanto mede esse menino?

Deve ser 49 cm. Mas também pode ser 49,1 ou é 49,2? Na falta de opção, coloca 49,5.
A vida de Errante sempre foi assim. Um mundo cheio de possibilidades de errar e um pouco de sorte para acertar. Eis a tentativa-erro.

Como no interior dessa cidade pequena, sem nome e cheia de caminhos, tudo tem seu lado bom. Assim, Errante ganhou uma grande virtude. Aprendeu a ser paciente. Ele não era indeciso como seu João, ele apenas esperava, preferia tentar a errar. Preferia errar tentando acertar.
Errante andava em círculos, losangos, quadrados. Era capaz até de confundir as lendas da cidade sem nome, cheia de caminhos e cheia de rostos sem rostos.
Errante descobria tantos caminhos que já não mais conhecia os rostos com quem cruzava.
Mas ele jamais se incomodava. Sabia que nunca ia se perder. Felizmente ele não herdou a maior virtude do seu pai. Errante era decidido.
Errava o caminho e pronto.

Ele sabia que os caminhos faziam parte do mundo de Quem são dois.
Sabia que um caminho nunca era um só, se sempre o levava para outro.

Foi num desses momentos de caminhos contínuos, caminhos cruzados e caminhos perdidos, que Errante descobriu as pegadas.

Ele ficou intrigado com as pegadas. Elas sempre o confundiam. Sempre o limitavam. Ele não queria seguir um caminho predestinado. De repente começou a fazer círculos, retas, caminhos turvos. Queria perder-se nas próprias pegadas.
Ele tinha paciência. Errante tinha o dia inteiro.

Foi nesse momento, nessas tentativas de errar seu próprio caminho que alguém descobriu o seu caminho. Não foi ele. Afinal, errante o confundira tanto, a ponto de deixá-lo feliz. Errante se perdeu tanto que acabou descobrindo o amor. Ou pelo menos, só o amor o descobriu.
Mas só tinha um problema. Essa menina era impaciente. Essa menina era determinada e até predestinada. Ela cruzou o caminho de errante. Ele também sentiu algo inexplicável, mas era muito mais uma sensação diferente de ser descoberto do que sentir amor. Afinal, Errante era tão complicado, que nem a maternidade o achara.

Ele não sabia o que era o amor. A sua vida era cheia de caminhos, mas nunca havia tentado esse caminho. Nunca havia procurado. E justo no dia que Errante estava mais perdido, ele não encontrou. Ele foi encontrado.

Errante começou a sentir uma coisa boa e uma coisa ruim. Sentiu raiva porque o amor para ele ainda não havia sido testado. Ainda era um caminho oculto. Errante precisava antes se perder, para depois se achar.

Mas quem disse que a menina sabia esperar?

A Menina

Era uma vez uma menina que muito entendia, mas pouco sabia. Aliás, das poucas coisas que ela sabia, ela descobria um pouco dela.

Ela era uma menina-meia. Ou uma meia-menina. Cada vez mais que se descobria, ela inventava um novo sentimento.

Um dia simplesmente ela descobriu o vazio, então de lá pra cá, ela começou a ficar mais leve, andar seguindo o vento. E andar seguindo o vento para ela, de repente virou uma vida ao acaso. Cheia de sonhos e fantasias, sem as limitações de ser. Quando a gente é completo, o vento não nos carrega. Alguém sempre está empurrando, esperando. Um par é infinito no sentido de possibilidades, mas único na única certeza de que alguém se perdeu.

Um dia essa menina já quis ganhar flores, já quis ser amada, já quis viver em um filme de amor. Embora, muitas vezes, ela deseje apenas os curtos instantes de adrenalina-consciência de um filme de terror. Então ela descobriu que não se vive apenas de anjos. Por mais vazia, mais incompleta que ela seja, não significa que ela chegará até as nuvens. Simplesmente porque, um peso de tão morto, pode cair no chão. Então essa menina descobriu que ela não é tão vazia, ela é completa no sentido ser anjo e ser demônio.

Essa menina descartou a idéia de ganhar flores. Por que ganhar flores, se ela pode ganhar uma nave espacial? Mas pra quê uma nave espacial, se ela pode flutuar com seu próprio peso de ser vazia? Não se sabe. Ela só descobriu que podia também tentar ganhar o mundo. Então começou uma história, em busca da descoberta de todos os sentimentos verdadeiros, e por que não, a busca dos sentimentos contrários.

De tanto desejar ganhar o mundo, essa menina perdeu milhões de concursos por aí, pelo meio do caminho, treinando possibilidades. Primeiro, ela tentou ganhar uma bicicleta. Mas teve certeza de que o concurso havia sido forjado. Depois, ela quis ganhar uma cozinha completa para sua mãe. Mas no mês anterior, nem a geladeira ela ganhara. Então, essa menina partiu para chocolates, canetas, e até cartas. Mas cansou de tentar ganhar o mundo dessa maneira. Foi assim, que ela começou a colecionar estrelas. A cada dia, o céu dava uma estrela. Em alguns dias, dependendo do humor dessa menina, ela ganhava três. Mas três são uma. Por que essas três, de tão completas, perderam-se em uma só, como uma cruz. Sem pai, sem filho e sem espírito.
A partir desse dia, essa menina traçou uma linha imaginária pelo mundo. Quer dizer, ela não traçou sozinha, apenas teve a idéia, quando ganhou de presente de aniversário, uma estrela cadente. Simplesmente ela dividiu o mundo em duas partes: Quem é um e Quem são dois. Começou a se descobrir um pouco mais a cada dia, até descobrir que ficar sozinha não é tão ruim.

Ela descobriu que tudo que precisa sentir para viver é muito mais físico e racional do que parece. Seus olhos já são dois. São completos e podem criar vida própria. Então, ela descobriu que se um dia chegasse a amar tanto alguém que porventura sentisse ciúmes, olhar para outro não seria nada demais. Afinal, seus olhos são completos.

Já o seu olfato, é outra história. É muito mais uma sensação única que ela estava simplesmente procurando, e não achava como antes fizera seus olhos. Seu pequeno Nariz era um só. Por isso, que outrora ela tanto quis ganhar flores. Ela ainda era muito inocente, e achava que a alma para ser tocada, precisa de mais um. Precisa sentir. A partir desse dia, essa menina começou a colecionar perfumes. Aroma de carinho, aroma de açúcar queimado, aroma até de fim de feira, ou de espirro de filhote de cachorro.

Mas o mundo dividido já estava ficando complicado, cheio de possibilidades. Se olhar não significava nada porque seus olhos já eram completos, o que ela poderia dizer das mãos?

Essa menina já estava começando a desacreditar da estrela cadente, quando sentiu que sua mão na verdade era Quem é um. Direita e esquerda, cada uma com possibilidades diferentes. Desde pequena, essa menina pulava amarelinha com a perna direita, mas só sabia escrever com a esquerda. E muitas vezes, enquanto a mão direita a conduzia para um caminho novo, cheio de tentações e novas possibilidades, a mão esquerda queria continuar andando reta. O pior era a mania das mãos de tentar ser uma só. A mão fechada, impossibilitada de segurar o mundo, aquele grande mundo que essa menina tanto quis ganhar.

Os seus pés também, às vezes imitavam as mãos. Pegadas indistintas. Caminhos ocultos. A menina não acreditava que ambos os lados, a conduziriam a um único caminho. Ela acredita nas diferenças. Sentava na areia e ficava descobrindo cada detalhe de cada pegada, de cada caminho. Mas foi em num dia desses, pensando seguir a pegada direita, das linhas retas e firmes, que ela começou a se desviar, e sem querer, entrou em um mundo cheio de novas possibilidades.

A menina descobriu o amor. Então ela descobriu que a todo custo, mesmo com cada unidade solitária, em cada parte do mundo de Quem é um, as diferenças sempre levam para o mundo de Quem é dois.

O caminho estava errado, a matemática não funcionou, ela não conheceu tampouco a causa. Mas ela descobriu que não há explicação para o que não se explica. Quem é um não pode ser sempre um, por que o mundo é muito grande para apenas duas mãos que nunca entram em acordo.

Quando essa menina descobriu que Quem é um, somado com Quem é um, pode dar dois e ao mesmo tempo um, ela descobriu que pode ganhar o que quiser. Sem concursos.
Pode ganhar Flores, chocolates, verdades e até desilusões. Pode ser completa e ao mesmo tempo vazia, porque virou uma.

Ela descobriu que pelo caminho errado, ela pode ganhar o mundo.